sexta-feira, 15 de maio de 2020


Crônicas na Pandemia

...falta de ar...


Acho que havia desmaiado, a primeira sensação foi de um peso sobre os pulmões, por mais ar que tentasse engolir não era possível saciar aquela fome, fome de ar? Não, já havia sentido fome quando criança, a fome é algo que vem aos poucos e vai crescendo, às vezes você a esquece, e invariavelmente retorna quando não saciada. A falta de ar é arrebatadora, vem intensa e gera desespero. A fome gera desespero, mas precisa de tempo, ouvi dizer que bons vinhos também precisam de tempo...

A falta de ar não, vem a galope, e quanto mais necessidade sente, mais rápido cavalga. A fome nos maltrata aos poucos, vai minando nossos sentidos, porque o vazio que se forma nas entranhas cresce e torna-se maior que outros sentidos, às vezes até maior que a dignidade. A falta de ar, intensa, gera desespero imediato, deve ser a iminência da morte que parece estar chegando em apenas alguns segundos. Tento me lembrar, quanto tempo fico em apinéia? Se respiro profundamente talvez uns 30 segundos, não tenho histórico de atleta. Mas agora, respirar profundamente é uma realidade distante, por mais que tente não consigo. Me disseram que mesmo nessa condição respiramos profundamente, mas o oxigênio não chega às células, complexo, nem tenho imaginação para tanto.

Abri os olhos, estão marejados, secretados talvez. Vislumbro outros dois olhos que me encaram através de uma máscara? Não, a máscara cobre a boca e as narinas, sobre os olhos amendoados está um anteparo de acrílico. Será que os anjos nos olham assim? Através de barreiras para não se contaminarem com nossos pecados? Num relâmpago, outro pensamento, se um anjo usasse EPI’s seria parecido com as enfermeiras e as médicas.

Tento falar. Apenas tento, até algo frugal como expressar a dor através de gemidos requer esforço porque para todo ar é imperativo que chegue aos alvéolos, meus pulmões reclamam a falta de alimento e eu sofro por eles.

Agora percebo, estou numa maca, enfermaria, hospital, covid, pandemia. É isso, contaminei-me, não sou essencial, minha profissão não é essencial, mas não posso ficar em quarentena. Sou vendedor, mascate como se dizia na época de meu avô, e vendo hoje para adquirir o que preciso amanhã, invariavelmente dia após dia. Juju, doce e querida Juliana, aguarda-me em casa com os dois rebentos, palavra também aprendida com meu avô, Francisco e Diego. Chico, Dieguito e Juju, todos esperam por mim no final do dia. Preciso me curar!

Mais desespero agora, pensar na possibilidade de minha ausência é mais doloroso que a falta de ar.

Faço gestos com as mãos, quero falar, mas meus pulmões se recusam a fornecer fluxo para gerar palavras. Acho que pedi caneta e papel, penso tão rápido que não presto atenção, não absorvo o que faço. Agora, com dificuldade, escrevo para o anjo de olhos amendoados: _ Preciso viver! Não posso deixar desamparados meus filhos!

Não pude evitar o clichê: _ Sou pai de família! Tenho chances?

No desespero, senti raiva, uma ira enorme pela injustiça da vida que se manifestava naquele instante. Porque eu?

E, numa voz doce, o anjo de olhos marejados me diz: _ Sim, fique calmo, vai ajudar a melhorar sua respiração. Precisamos levá-lo à UTI, lá temos mais recursos para ajudá-lo. Pense nos seus e trasmita seus bons pensamentos para eles. Sempre irão precisar de você e sempre que pensamos em quem amamos os mantemos vivos. Por eles, mantenha-se vivo!

Expressou-se tão bem! Embora ela soubesse que, apesar dos trinta e poucos anos, as comorbidades deixavam as apostas contra mim. Mas não expressou nada disso, pelo contrário, deu-me esperança. É tudo o que tenho no momento, é tudo o que preciso.
Acho que desmaiei novamente, já estava em outro ambiente, mais frio. Preparavam-se para o entubar-me. Novamente em meio a gestos entrecortados por tentativas de fala, deram-me papel e caneta. Precisava, como sabiamente me contou o anjo, fazer viver os que amo e fazer-me vivo para eles.

“Juju, meu amor, foi tudo muito rápido. Nem percebi direito o que aconteceu e já cheguei na UTI, mas isso foi inevitável. Estava desesperado, mas uma médica (ou seria enfermeira?), que me pareceu um anjo, trouxe-me algo inesperado, esperança. É para isso que vivemos e continuamos a viver através dos que nos amam. Penso sempre em vocês, Dieguito é muito novo e não vai entender agora, nem precisa, mas  um dia compreenderá o que transmito aqui. Mas pense que podemos deixar pessoas melhores para essse mundo, é o necessário para mudar nossa realidade. Chico e Dieguito têm uma vida pela frente, quero que vejam em mim exemplo, do que devem e não devem fazer. Nunca me alimentei direito, tampouco fiz exercício, e você sempre me disse que não era por falta de grana, esposa sábia, como são as mulheres em sua maioria e eu, como a maioria dos homens, fui relapso. Diabetes, obesidade, hipertensão, algumas dessas heranças nossos filhos podem deixar de ter, basta cuidarem da saúde. Amem muito, incondicionalmente, dêem valor à humanidade que é inerente às pessoas. Disso não me arrependo. E, se fui rígido com eles, foi para que não tolerassem nem os pequenos delitos. Honestidade e sinceridade são fundamentais. Se receber essa carta sei que a dor será inevitável, mas faça o  sofrimento ser uma opção e opte por continuar sendo uma pessoa melhor a cada dia, que o Chico e Dieguito também pensem assim, ajude-os nesse caminho. Com todo amor, penso sempre em vocês!”

No dia seguinte a Juju recebeu minha carta e o Anjo de olhos amendoados estava lá para confortá-la.